Ramos, C.C., 2019. Traço de afetividade nas
trilhas de Laetoli. Antropo, 41, 25-29. www.didac.ehu.es/antropo
Traço de afetividade nas trilhas de Laetoli
Trait
of affection in the trails of Laetoli
Cecil Cordeiro Ramos
FASIG-Faculdade de
Ciências da Saúde do IGESP. cecil2@uol.com.br
Palavras chave: Trilhas de Laetoli, Afetividade.
Keywords:
Laetoli trails, Affection
Resumo
Introdução: Desde sua descoberta em 1978, a localidade paleontológica de Laetoli, ao norte da Tanzânia, chama a atenção pelos achados de trilhas de hominins, provavelmente Australopithecus afarensis, sendo rara oportunidade de estudar-se a biomecânica deste táxon. Existe a suposição de que haveria sinais de afetividade entre aqueles caminhantes, afetividade esta artisticamente representada em estampa postal daquele país.
Objetivos: Objetivamos testar esta hipótese por meio das trilhas G1 E G3 do sitio G, onde dois indivíduos caminham lado-a-lado, com aparente retardo da marcha do indivíduo maior (G3) a acompanhar o indivíduo menor (G1).
Material e Métodos: Por meio de dados recolhidos por Masao et al (2016) e Tuttle (1987) avaliamos as seguintes variáveis: tamanho médio das pegadas e extensão média dos passos.
Resultados: Observamos aumento da extensão do passo de G1 (6,2%) e diminuição da extensão do passo de G2 (-4,8%).
Conclusão: A variação na extensão dos passos de G1 e G3 são apenas compatíveis com a equalização da marcha do deambular em grupo, não se confirmando sinais de afetividade.
Summary
Introduction: Since its discovery in 1978, the paleontological town of Laetoli, north of Tanzania, draws attention to the finds of trails of hominins, probably Australopithecus afarensis, being rare opportunity to study the biomechanics of this taxon. There is the assumption that there would be signs of affection among those hikers, affectivity is artistically represented in the postal print of that country.
Objectives: We aimed to test this hypothesis through the G1 and G3 tracks of the G site, where two individuals walk side-by-side, with apparent gait retardation of the major individual (G3) accompanying the minor individual (G1).
Material and Methods: Using data collected by Masao et al (2016) and Tuttle (1987), we evaluated the following variables: average footprint size and average footprint length.
Results: We observed an increase in the extension of the G1 step (6.2%) and a decrease in the extension of the G2 step (-4.8%).
Conclusion: The variation in the extension of the steps of G1 and G3 are only compatible with the equalization of gait walking in groups, not confirming signs of affectivity.
Introdução
Laetoli, localidade paleontológica ao norte da Tanzânia, tornou-se mundialmente famosa em 1978 quando Mary Leakey, paleoantropóloga britânica, descobriu pegadas de hominins impressas em cinzas vulcânicas petrificadas, datadas do período Plio-Pleistocênico (3,66 milhões de anos) e atribuídas, não sem controvérsias, a Australopithecus afarensis, único táxon hominin encontrado até o momento nas camadas superiores de Laetoli (Harrison, 2011). Das inúmeras trilhas de animais preservadas destacam-se três: trilha S1 do sitio S(L8), referente a um único percurso individual; trilhas G1 e G2/G3 do sitio G, que são paralelas, correspondendo a faixas bipedais de um indivíduo menor (G1) caminhando ao lado de um indivíduo maior (G3), que tem suas pegadas sobrepostas a outro indivíduo (G2). Os dois sítios (S e G), distantes aproximadamente 150 metros, encontram-se no mesmo plano estratigráfico, de maneira a poder-se inferir que as referidas trilhas pertencem ao mesmo grupo de hominins (Masao et al, 2016).
Importante fato a chamar a atenção de todo pesquisador, que nelas se debruçam, é a grande variedade no tamanho das pegadas, fato que encontra sua melhor explicação na provável grande diversidade sexual dos Australopithecus afarensis, sendo que Plavcan et al (2005) acredita que essa diversidade possa ter sido tão importante quanto a observada, p.e., nos gorilas. Mas nos chama também a atenção a variedade da extensão dos passos e das passadas que, num exame superficial, nem sempre são compatíveis com o tamanho dos pés, que em última análise predizem o tamanho de cada indivíduo, e consequentemente a extensão de cada passo (Bennett, et al, 2009). Já foi intuído por outros autores (Wagnild e Wall-Scheffler, 2013) que a variação da extensão dos passos possa estar determinada não apenas pela condição fenotípica de cada sujeito, mas também pelo ajuste da velocidade da marcha ao se deambular em grupo. Especialmente em relação aos indivíduos G1 e G3 parece, ao olho desarmado, que o indivíduo G3 retarda deliberadamente seu andar a acompanhar a velocidade do indivíduo G1, a ponto de alguns ilustradores mostrarem, em suas representações, os referidos indivíduos caminhando de mãos dadas (Figura 1).
Figura 1. Estampa postal (1600 TZS) emitida em 20
de setembro de 2014 pela Tanzânia Posts Corporation. Impressa por Osterreichische
Staatsdruckerei.
Figure 1. Postage stamp (1600 TZS) issued on
September, 2014 by Tanzânia Posts Corporation. Printed by Osterreichische
Staatsdruckerei.
Objetivos
Neste estudo nós reexaminamos as pegadas e passos que três hominins deixaram em Laetoli (S1, G1 e G3). Testamos a hipótese que o indivíduo G3 alterou substancialmente a velocidade do seu caminhar a permitir que o indivíduo menor (G1) permanecesse a seu lado durante sua jornada, fato que poderia ser atribuído a provável relação de afetividade entre os dois indivíduos.
Material
e métodos
Atualmente as trilhas de Laetoli estão interditadas para novas pesquisas e medições. Como são inúmeros os autores que realizaram documentações fotográfica para medidas das pegadas e passos in loco (Crompton et al, 2012; Bennet et al, 2016; Masao et al, 2016; Matthew et al. 2016; Raichlen e Gordon, 2017), algumas feitas por sofisticadas tecnologias como fotogrametria 3D, optamos por utilizar as imagens disponíveis na literatura (Leakey e Hay, 1979; Leaky e Harris, 1987; Tuttle et al, 1990; Tuttle, 1987; Masao et al, 2016), confirmando tais medições por meio de ampliações 1:1 das referidas trilhas. É foco de nosso estudo as trilhas de três indivíduos: G1 e G3 do sitio G, e S1 do sitio S (teste-pits L8). Os dados do sitio S são de Masao (2) (valores médios de onze pegadas e respectivos passos), enquanto os dados do sitio G são de Tuttle (1987) (valores médios obtidos de nove pegadas e passos de G1 e oito pegadas e passos de G3) sendo que para estes, valores similares foram obtidos e confirmados por Leakey (1979) e Benett et al (2016). Das referidas trilhas trabalhamos com as seguintes variáveis: tamanho médio das pegadas, extensão média dos passos, altura estimada dos indivíduos e extensão estimada dos passos em velocidade preferencial. Entende-se por “pegada” a medida do comprimento linear entra a porção mais posterior da impressão deixada pelo calcâneo até a da impressão da porção mais anterior deixada pelo hálux. Já “passo” seria a distância, na linha media do trajeto, delimitada pelos planos interseccionais determinados pelas impressões posteriores dos calcâneos do primeiro pé e de seu subseqüente (Masao et al, 2016). O cálculo da altura estimada de cada individuo foi feita pelo cálculo de Dingwall, que adaptou a relação altura/ extensão da pegada, para humanos (0,14-0,16) para estimativa por ele calculada para Australopithecus afarensis (0,15-0.16) (Dingwall et al, 2013). O cálculo da velocidade preferencial (ou extensão preferencial do passo) se faz pela relação altura/extensão do passo ou extensão da pegada/extensão do passo em marcha reta, espontânea, solitária, no plano. Como não existem parâmetros biomecânicos destes hominins, assumimos que o indivíduo S1 era adulto, caminhava sem dupla ou grupo, de maneira que a extensão de seu passo era cômoda, preferencial e energeticamente econômica. A relação assim determinada serviu de parâmetro comparativo para os demais indivíduos e suas respectivas maneiras de deambular.
A preservação das referidas impressões podálicas variam muito na sua qualidade em função de determinantes taponômicos como raízes, fraturas naturais do solo e efeitos erosivos cumulativos de milhões de anos de maneira que não há de se falar em precisão milimétrica das medidas tomadas para análise.
Resultados
As medidas das pegadas e passos da trilha L8-S1, G1 e G3 encontram-se na Tabela 1.
Trilhas |
S1 |
G1 |
G3 |
Número de pegadas |
11 |
9 |
8 |
pegada (média em mm) |
261 |
180 |
209 |
passo (média em mm) |
568 |
416 |
433 |
Atura estimada A. afarensis |
161-168 |
111-116 |
129-135 |
Tabela 1. Numero de pegadas, tamanho médio das
pegadas, extensão média dos passos e altura estimada (para A. afarensis) para as trilhas dos indivíduos S1, G1 e G3. Dados de
S1 são de Masao (2016), e dados de G1 e G3 de Tuttle (1981).
Table 1. Number of footprints, mean size of
footprints, mean step length and estimated height (for A. afarensis) for the trails of individuals S1, G1 and G3. Data for
S1 are from Masao (2016), and data for G1 and G3 from Tuttle (1981).
O tamanho médio das pegadas do individuo S1 foi de 26,1cm (24,5 a 27,3), e o tamanho médio de seus passos de 56,8cm (50,5 a 66,0). O cálculo estimado do tamanho do indivíduo S1, em função do tamanho médio das pegadas, foi de 164,5cm (161-168), sendo que a relação extensão do passo/tamanho da pegada foi de 2,31 , próxima a relação esperada para humanos adultos modernos (Racic et al, 2009). Pelo fato do indivíduo S1 estar caminhando só, em terreno plano, assumimos que esta relação (tamanho da pegada/extensão do passo=2,31) é a esperada para a indivíduos da espécie, adultos, deambulando de forma preferencial e energeticamente econômica.
O tamanho médio das pegadas do individuo G1 foi de 18cm, e o tamanho médio de seus passos de 41,6cm. O cálculo estimado do tamanho do indivíduo G1, em função do tamanho médio das pegadas, foi de 113,5cm (111-116). Pelo índice estabelecido em S1, seria de se esperar que o passo médio de G1 estaria em torno de 39,17cm, o que demonstra que seu passo (41,6cm) está 6,2% maior que o esperado.
O tamanho médio das pegadas do individuo G3 foi de 20,9cm, e o tamanho médio de seus passos de 43,3cm. O cálculo estimado do tamanho do indivíduo G3, em função do tamanho médio das pegadas, foi de 132cm(129-135). Pelo índice estabelecido em S1, seria de se esperar que o passo médio de G3 estaria em torno de 45,4cm, o que demonstra que seu passo (43,3cm) está 4,8% menor que o esperado.
Discussão
Deduções sobre a
cinemática da marcha de extintos hominins habitualmente se faz, por falta de
opção, pelo estudo do caminhar de humanos modernos (Dingwall et al, 2013; Hatala et al, 2016a, 2016b). Similar inferência se faz no cálculo da
altura e massa corpórea em função do comprimento do pé ou da pegada, embora
sabidamente não seja esta a melhor relação forense para o cálculo da altura (de
Lourdes Borborema, 2010). Pessoas e animais tendem a caminhar em torno de uma
velocidade ideal que minimiza o consumo de energia, observando-se médias de
velocidades diferentes entre homens e mulheres que variam em função da altura e
massa corpórea (Wagnild e Wall-Scheffler, 2013). Homens perfazem passos mais longos, aumentando a extensão da
passada quando querem aumentar a velocidade. Já mulheres, quando querem
aumentar a velocidade, aumentam a extensão do passo tanto pela rotação pélvica
quanto pelo aumento da freqüência das passadas. Quando em grupo, humanos tendem
a equalizar suas marchas pela velocidade média do grupo, mas Wagnild e Wall-Scheffler (2013) observaram que, na
presença de afetividade, o individuo de maior porte, em geral o macho, tende a
diminuir sua velocidade até próxima a velocidade ideal do indivíduo de menor
porte, como no caso extremo de um adulto que retarda seu passo a acompanhar o
caminhar de uma criança. Na casuística
apresentada observa-se tanto aumento da velocidade/tamanho do paço do indivíduo
menor (6,2%), quanto diminuição da velocidade/tamanho do paço do indivíduo
maior (-4,8%), quadro compatível com a equalização das passadas no deambular em
grupo, e não uma possível demonstração de afetividade de G3 para com G1. A
aparente desproporcionalidade entre o tamanho da pegada de G1 e G3 explica-se
pela sobreposição das pegadas de um terceiro indivíduo (G2), sobre as pegadas
de G3, falseando pegadas desproporcionalmente grandes e passos desproporcionalmente
curtos, o que causa a impressão do retardo da marcha de G3.
Conclusão
Não se confirma a hipótese de sinais de afetividade na trilha G de Laetoli, sendo que a velocidade/tamanho dos passos dos indivíduos G1 e G3 são apenas compatíveis com a equalização da marcha do deambular em grupo.
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