Ramos, C.C., Ramos, C.D., 2018. Nariz: autapomorfia do gênero Homo. Antropo, 39, 115-120. www.didac.ehu.es/antropo


 

Nariz: autapomorfia do gênero Homo

 

Nose: autapomorphy of the genus Homo

 

Cecil Cordeiro Ramos, Cecil Dominowski Ramos

 

FASIG - Faculdade de Ciências da Saúde. Rua de Consolação 1025 – Bairro Consolação. São Paulo - capital. CEP 01301000

 

Autor Correspondente: Cecil C Ramos. cecil2@uol.com.br

 

Palavras chave:  Nariz, autapomorfia.

 

Key words:  Nose, autapomorphy.

 

Resumo

Introdução: Embora seja consenso que apenas o Homo sapiens possui pirâmide nasal estruturada e convexa, não existem dados na literatura que mostrem o momento do aparecimento do referido apêndice na nossa escala evolutiva.

Objetivo: Objetivamos com este trabalho determinar qual primeiro hominino a apresentar nariz convexo, determinando assim a temporalidade de seu aparecimento.

Método: Utilizamos para tal análise imagens de crânios de homininos disponíveis em mídias científicas, nas quais aplicamos estudo forense de Gerosimov para análise da projeção nasal.

Resultados: Por esta análise observamos que nos crânios de “australopitecídeos” o ângulo do osso próprio do nariz (âopn) era maior que o ângulo do prognatismo facial adaptado (âpfsa), caracterizando a ausência de pirâmide nasal, fato que se inverte a partir dos crânios de Homo erectus.

Conclusão: Desta forma podemos inferir o aparecimento da pirâmide nasal a partir do gênero Homo, há cerca de 1,8-1,9 milhões de anos.

 

Abstract

 Introduction: Although it is a consensus that only Homo sapiens has a structured and convex nasal pyramid, there are no data in the literature that show the moment when the appendix appears on our evolutionary scale.

Objective:  We aim with this work to determine the first hominin that presents it, thus determining the temporality of its appearance.

Methods: We used for this analysis images of hominin skulls available in scientific media, in which we applied a Gerosimov forensic study to analyze the nasal projection.

Results:  By this analysis, we observed that in the australopithecine skulls, the angle of the nose bone (ânb) was greater than the angle of the adapted facial prognathism (âafp), characterizing the absence of a nasal pyramid, a fact that is starting inverted from the skulls of Homo erectus.

Conclusion: In this way we can infer the appearance of the nasal pyramid from the genus Homo, about 1.8-1.9 million years ago.

 

Introdução

O Homo sapiens é, atualmente, o único representante da infraordem Catharrhini (do Grego kata, “para baixo” e rhinos, “nariz”) que contradiz o etmo taxonômico pelo autapomórfico nariz projetado em forma de pirâmide, contrariamente a seus parentes de ordem, todos com narizes planos ou côncavos (Tedeschi-Oliveira, 2010; Foley e Lewin, 2003).  Mas se patente é tal constatação, controvérsias ainda existem quanto ao momento de seu aparecimento na linhagem Hominina e das possíveis explicações desta sua projeção. De maneira geral o desenvolvimento da pirâmide nasal é pouco explorado pelos autores e editores de importantes livros textos de paleoantropologia (Foley e Lewin, 2003; Lewin, 2004; Hardt, 2007; Klein, 2009), dedicando estes mais atenção a outros elementos do crânio e pós crânio. Verdade que existe uma preocupação por parte de vários estudiosos quanto a sua adaptabilidade fisiológica, em especial na procura de uma explicação para seu peculiar aumento fenotípico (Aracy et al, 2004; Bruner et al, 2004; Franciscus e Trinkaus, 1988; Irmaket et al, 2004; Nishimura et al. 2016), mas não encontramos na literatura o cuidado na determinação  do momento, na escala evolutiva, de seu aparecimento como apêndice facial. Quanto aos possíveis mecanismos de tal desenvolvimento, alguns autores procuram sua elucidação nas mudanças da base do crânio determinadas pelo bipedalismo (Jankowski, 2011), bem como no deslocamento póstero-anterior do esplancnocrânio determinado pelo progressivo aumento cerebral (Franciscus e Long 1991; Bruner, 2007; Mladina et al, 2009; Bastir e Rosas, 2016) embora Harrison (Harrison, 1992), já nos idos do século XX, em carta aos editores da revista Nature, nos lembrasse que a projeção nasal nos humanos não se deve a simples projeção dos ossos  próprios do nariz ou da pré maxila, como uma observação mais superficial poderia sugerir. Na verdade a confirmação do momento do aparecimento da pirâmide nasal, singular apêndice existente apenas na nossa linhagem, sempre foi problema de difícil resolução, já que boa parte da constituição da pirâmide é de tecido fibrocartilaginoso que desaparece no processo de fossilização, de maneira que temos que lançar mão de técnicas de antropologia forense para sua reconstituição.

Objetivamos com este estudo, por análise cefalométrica em crânios de homininos, determinar o momento do advento da pirâmide nasal nestas estruturas fossilizadas e como conseqüência seu aparecimento em nossa escala evolutiva, sendo nossa hipótese que apenas no gênero Homo ela se estabeleceu.

 

Material e métodos

Foram realizados estudos cefalométricos em 27 crânios de homininos disponíveis nas mídias e literaturas científicas (http://www.eskeletons.org; http://humanorigins.si.edu), a saber: sete crânios de Homo sapiens, quatro crânios de Homo neanderthalensis, cinco crânios de Homo heidelbergensis, quatro crânios de Homo erectus, um crânio de Homo rudolfensis, dois crânios de Homo habilis, um crânio de Australopithecus sediba e três crânios de Australopithecus africanus. Os referidos crânios foram escolhidos por apresentarem integridade estrutural suficiente para delimitação dos pontos prosopométricos.

No perfil de todos esses crânios foram determinados os seguintes pontos prosopométricos: plano de Frankfurt(F), Násion (n- ponto de encontro da sutura internasal e a sutura frontonasal), Rínion (rhi- ponto médio, na sutura internasal, na sua parte mais inferior e mais anterior), Subspinale (ss- ponto mais reentrante, no plano sagital, entre o prosthion e a espinha nasal anterior); os seguimentos n-rhi, n-ss, e os respectivos ângulos formados pela intersecção destes segmentos com o plano de Frankfurt: Ângulo do osso próprio do nariz (âopn- ângulo formado pela linha n-rhi e o Plano de Frankfurt) e Ângulo do prognatismo facial superior adaptado (âpfsa-ângulo formado pela linha n-ss  e o plano de Frankfurt). Denominamos ângulo do prognatismo superior “adaptado” pois na presente análise trocamos o ponto referencial “prosthion” pelo ponto “subspinale”, pelo fato do primeiro ponto estar mais sujeito a variação do prognatismo alveolar, fato que foge do escopo deste estudo. Tais pontos prosopométricos, segmentos e ângulos foram utilizados na clássica análise de Gerosimov (Gerasimov, 1971), não para determinação da projeção nasal como originalmente desenvolvida, mas para determinação da presença ou não da referida projeção.

 

Resultados

Os resultados obtidos das medidas angulares âopn e âpfsa, para cada crânio avaliado, encontram-se na Tabela 1.

 

Espécie

Fóssil

Anos (Mi)

âopn

âpfsa

Hs

Ccr

0,001

73o

94o

Hs

Gamble

0,008

62o

92o

Hs

Wwampl

0,01

68o

91o

Hn

Tabun1

0,012

54o

76o

Hs

UC101

0,034

65o

85o

Hs

UC102

0,03

65o

85o

Hs

Cro-Mag

0,032

42o

86o

Hn

Shanidar1

0,045

60o

90o

Hn

Guatari1

0,06

57o

82o

Hn

LChapell

0,06

44o

75o

Hn

Teshik

0,07

68o

85o

Hhe

BHill1

0,3

53o

78o

Hhe

Kabwel

0,3

65o

85o

Hhe

Petralona

0,35

50o

87o

Hhe

Arago210,45

0,45

60o

79o

Hhe

Bodo

0,6

64o

79o

He

Sang17

0,8

64o

75o

He

Zhoukou

0,8

69o

84o

He

Turkana

1,5

60o

72o

He

KNM3733

1,8

64o

81o

Hha

OH24

1,8

77o

74o

Hr

KNM1470

1,9

58o

78o

Ase

MH1

1,9

66o

66o

Hha

KNM1813

1,9

68o

72o

Aaf

sts5

2,5

68o

60o

Aaf

sts52

2,8

70o

69o

Aaf

Taung

3

80o

75o

Tabela 1. Tabela geral com idade (em milhões de anos) e resultados cefalométricos de cada fóssil para cada espécie (Hs- Homo sapiens, Hn- Homo neanderthalensis, Hhe- Homo heidelbergensis, He- Homo erectus, Hr- Homo rudolfensis, Hha- Homo habilis, Ase-Australophitecus sediba, Aaf- Australophitecus africanus), para as medidas angulares âopn (ângulo do osso próprio do nariz) e âpfsa (ângulo da projeção facial superior adaptado). O maior ângulo sempre grafado em cinza.

Table 1. General table with age (in millions of years) and cephalometric results of each fossil for each species (Hs- Homo sapiens, Hn- Homo neanderthalensis, Hhe- Homo heidelbergensis, He- Homo erectus, Hr- Homo rudolfensis, Hha- Homo habilis, Ase- Australophitecus sediba, Aaf- Australophitecus africanus), for the angular measurements âopn (angle of the nose bone) and âpsa (angle of the adapted upper facial projection). The largest angle is always grayed out.

 

Neste quadro observamos que todos os crânios com menos de 1,8 milhões de anos apresentam âopn menor que âpfsa, caracterizando a presença da pirâmide nasal nos referidos fósseis (Fig. 1).

Observação semelhante, mas com resultado oposto, deu-se nos crânios com mais de 1,9 milhões de anos, todos com âopn maior que âpfsa, compatíveis com a ausência da pirâmide nasal nos referidos fósseis (Fig. 2).

O hominino Homo habilis é a única espécie, na nossa casuística, a não apresentar homogeneidade nas grandezas angulares, ora com âopn maior (OH24), ora com âpfsa maior (KNM1813). Apenas no Australopithecus sediba deixamos de observar um ângulo prevalecendo sobre outro, apresentando ambos a mesma medida.

 

Figura 1. Análise cefalométrica do crânio de Homo erectus Sangiran 17. Observa-se ângulo do osso próprio do nariz (âopn) menor que o ângulo do progmatismo facial superior adaptado (âpfsa). LF: Linha de Frankfourt; n: Násion; rhi: Rhínion; ss: Subspinale.

Figure 1. Cephalometric analysis of Homo erectus Sangiran's skull 17. An angle of the proper bone of the nose (âopn) smaller than the angle of the adapted upper facial prognathism (âpfsa) is observed. LF: Frankfourt line; n: Nasion; rhi: Rhinion; ss: Subspinale.

 

Figura 2. Análise cefalométrica do crânio de Australophitecus africanus Taung 1. Observa-se ângulo do osso próprio do nariz (âopn) maior que o ângulo da projeção facial superior adaptado (âpfsa). LF: linha de Frankfourt; n: Násion; rhi: Rhínion; ss: Subspinale.

Figure 2. Cephalometric analysis of the Australophitecus africanus Taung skull 1. An angle of the proper bone of the nose (âopn) greater than the angle of the adapted upper facial projection (âpfsa) is observed. LF: Frankfourt line; n: Nasion; rhi: Rhinion; ss: Subspinale.

 

Discussão

Embora ciente da pequenez de nossa casuística, esta está limitada em função dos achados arqueológicos até o momento, e da integridade estrutural e morfológica dessas peças, sendo que optamos por não utilizar aqueles crânios com preenchimentos de partes faltantes, por assumir que sempre nesses casos haverá algum grau de interpretação por parte de seu reconstrutor.

Optamos em nossas análises evitar o uso de grandezas lineares, uma vez que estamos a comparar espécies diferentes, com provável variação tanto pela idade quanto pelo dimorfismo sexual. Assim, nossa análise é feita sobre variação angular, aferição que melhor se presta na análise cefalométrica clássica para as projeções faciais (Pereira e Alvin, 2015). Utilizamos a análise cefalométrica de Gerosimov (Gerasimov, 1971), que determina a projeção nasal pelo âopn no plano que passa pela espinha nasal anterior. Por esta análise, para que exista projeção nasal, o seguimento n-rhi deve tangenciar o plano que passa pela espinha nasal anterior externamente a própria espinha, formando o âopn. Dito de outra forma, para que se possa observar a existência da pirâmide nasal, o âopn deve ser menor que o âpfsa (Fig.1). Sensibilizamos o estudo trocando o ponto da espinha nasal anterior pelo ponto subspinale (ss) por ser este alguns milímetros posterior e portanto mais sensível a falta da referida projeção.

Pelos dados por nós coletados (Tabela 1), observamos que nas espécies mais modernas, a partir do Homo erectus, todos os crânios apresentam o âopn menor que o âpfsa (Fig.1), caracterizando nestes casos a presença de pirâmide nasal, enquanto  que nas espécies mais antigas  o âopn é maior que o âpfsa, caracterizando então a falta ou inexistência da pirâmide nasal (Fig.2). Assim, na temporalidade da nossa escala evolutiva existe um curto intervalo, de aproximadamente 100.000 anos,  entre os restos fossilizados dos últimos “australopitecídeos” e dos primeiros Homo erectus, onde podemos afirmar que o aparecimento da pirâmide nasal se deu, entre 1,8 e 1,9 milhões de anos. Em uma análise mais acurada, observamos não conformidade nos crânios disponíveis de Homo habilis pois, ao contrario do esperado, o crânio mais antigo (KNM181-1,9 milhões de anos) mostra mais potencialidade para presença de pirâmide nasal que o crânio mais recente (OH24-1,8 milhões de anos), que apresenta a mesma falta de projeção observada nos crânios dos “australopitecídeos”. A diversidade observada nos crânios de Homo habilis  pode ser explicada pela diminuta quantidade de crânios disponíveis para análise, ou mesmo por variações decorrentes de possível dimorfismo sexual ou juvenilidade (Rightmire, 2012) . Curioso observar o estudo cefalométrico do crânio MH1, pertencente a singular espécie Australophitecus sediba, por apresentar este a mesma medida no âopn  e no âpfsa, que se não tem valor estatístico por ser medida única, é elegante por aparentemente mostrar o “turning point” da evolução do nosso nariz.

 

Conclusões

A partir de nossos dados podemos inferir o aparecimento da pirâmide nasal a partir do gênero Homo, há cerca de 1,8-1,9 milhões de anos, certamente na espécie H erectus, mas provavelmente já observável em alguns indivíduos da espécie H habilis.

 

Bibliografia

Aracy P, Balbani S, Caniello M, Passerottí G, Butugan O. 2004. Nose and Paranasal Sinuses: Evolution.  Arq Fund Otorrínolaringol. 5:224-30.

Bastir M1, Rosas A. 2016. Cranial base topology and basic trends in the facial evolution of   Homo. J Hum Evol. 91:26-35.

Bruner E, Saracino B, Ricci F, Tafuri M, Passarello P, Manzi G. 2004.  Midsagittal cranial shape variation in the genus Homo by geometric  Morphometrics. Coll Antropol. 28:99-112.

Bruner E. 2007. Cranial shape and size variation in human evolution: structural and  functional perspectives. Childs Nerv Syst. 23:1357-65.

Foley R, Lewin R. 2003. The principles of evolutionary theory.  In: Foley R, Lewin R, editors. Principles of Human Evolution. Second edition. Oxford-UK: Wiley-Blackwell. p. 27-34.

Franciscus RG, Long JC. 1991. Variation in human nasal height and breadth. Am J Phys Anthropol. 85:419-27.

Franciscus RG, Trinkaus E. 1988. Nasal morphology and the emergence of Homo erectus. Am J Phys Anthropol. 75:517–27.

Gerasimov MM. 1971. The face finder. First Edition. Hutchinson; p. 395.

Hardt, T. 2007. Handbook of Paleoanthropology: Vol I: Principles, Methods and Approaches Vol II: Primate Evolution and Human Origins Vol III: Phylogeny of Hominids. Springer Science & Business Media.

Harrison, JP. 1992. The Projection of the Nasal Bones in Man and the Ape. Nature. 27:783-90.

Irmak MK, Korkmaz A, Erogul O. 2004. Selective brain cooling seems to be a mechanism leading to human craniofacial diversity observed in different geographical regions. Med Hypotheses. 63:974–9.

Jankowski R. 2011. Revisiting human nose anatomy: phylogenic and ontogenic perspectives.   Laryngoscope. 121:2461-7.

Klein R G. 2009. Evolution of the Genus Homo.  In: Klein R G,  The Human Career: Human Biological and Cultural Origins; 3a edition. Chicago-USA: University Of Chicago Press; 2p. 520-28.

Lewin R. 2004. The hominin adaptation. In: Lewin R,  Human Evolution: An Illustrated Introduction. 5 edition. Oxford-UK: Wiley-Blackwell;  p. 129-51.

Mladina R, Skitarelić N, Vuković K. 2009. Why do humans have such a prominent nose? The final result of phylogenesis: a significant reduction of the splanchocranium on account of the neurocranium. Med Hypotheses. 73:280-3.

Nishimura T, Mori F, Hanida S, Kumahata K, Ishikawa S. 2016 Impaired air conditioning within the nasal cavity in flat-faced  Homo.  Plos Comp Biol. 12:e1004807.

Pereira CB, Alvin MCM. 2015. Manual para estudos craniométricos e cranioscópicos. UFPelotas – Curso de Odontologia.

Rightmire GP. 2012. The evolution of cranial form in mid-Pleistocene Homo.  S Afr J Sci. 108:3-4.

Tedeschi-Oliveira SR. 2010. Reconstrução facial forense: projeção nasal. Tese de Doutorado. Faculdade de Odontologia USP.