Cunha, E., Silva, H.P., 2005, A recente descoberta paleoantropológica da Ilha das Flores: alguns comentários. Antropo, 10, 29-33. www.didac.ehu.es/antropo


A recente descoberta paleoantropológica da Ilha das Flores: alguns comentários

 

Some comments on the recent paleoanthropological discovery at Flores Island

 

Eugénia Cunha1, Hilton P. Silva2

 

1Profª Catedrática, Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. E-mail: cunhae@antrop.uc.pt

2Prof. Adjunto, Departamento de Antropologia, Setor de Antropologia Biológica, Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Meio Ambiente, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Quinta da Boa Vista s/n, 20940-040, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: hdasilva@acd.ufrj.br

 

Palavras chave: Hominíneo; Flores; tamanho cerebral, evolução humana

 

Key-words: Flores; Hominin; brain size; human evolution

 

Resumo

A intrigante descoberta de um hominídeo em miniatura na ilha das Flores tem sido considerada como um dos grandes acontecimentos científicos do ano transacto. Tal facto suscitou-nos tecer alguns comentários e levantar algumas questões sobre este inegavelmente importante mas controverso conjunto de fósseis, sobre os quais, em nossa opinião, ainda muito haverá para esclarecer.

 

Abstract

The intriguing discovery of a miniature human species named as Homo floresiensis has been considered as one of the main scientific events of 2004. We therefore present here some comments on this controversial new fossil. We argue that there is still a lot to be known about this new creature.

 

A recente descoberta paleoantropológica da Ilha das Flores: alguns comentários

Uma simples busca por palavra-chave na internet pode dar-nos uma boa ideia sobre a dimensão da repercussão de uma descoberta científica. No caso do hominíneo descoberto na ilha de Flores, na Indonésia, e anunciado ao mundo no final do ano passado (Brown et al., 2004; Morwood et al., 2004), a pesquisa resulta em mais de 47.000 sites que se referem ao tema. A discussão sobre as origens dos seres humanos modernos continua a ter uma enorme atracção sobre todos nós!

Desde que o casal Louis e Mary Leakey se aventurou pela savana africana na procura de fósseis de ancestrais humanos nas primeiras décadas do Século XX, tem-se verificado uma intensa corrida por parte dos paleoantropólogos para encontrar, datar e nomear o maior número possível de membros pretéritos da nossa árvore evolutiva. Quase todos os anos, novas descobertas de hominíneos (humanos modernos e seus ancestrais) aparecem e prometem mudar o cenário da história da nossa espécie. O mais recente achado, uma espécie humana em miniatura, foi denominado de Homo floresiensis (Brown et al., 2004) e vem, como o nome indica, da longínqua ilha das Flores. Os seus descobridores sugerem que os fósseis pertencem, tal como nós, ao género Homo, porque o crânio encontrado reúne um conjunto de características que são exclusivas deste género, como dentes posteriores pequenos e com esmalte fino, calota craniana espessa e ossos da face delicados e com pouco prognatismo. Porém, os autores consideram que o conjunto do material descrito, composto por dois indivíduos, denominados LB1 (representado por um crânio, uma mandíbula, alguns ossos das pernas, e pélvis) e LB2 (correspondente a apenas um dente pré-molar), apresenta outros traços no crânio e também nos ossos do corpo semelhantes a diversas espécies de hominóides (super-família que inclui o Homem e seus ancestrais, e os primatas superiores –gibão, orangotango, gorila e chimpanzé), como o género Australopitecus e o chimpanzé, diferindo, no entanto, suficientemente das outras espécies já descritas para ser considerado como uma nova espécie. Seria um descendente de Homo erectus que, teria evoluído e sobrevivido isolado na Ilha das Flores, até há cerca de 18 mil anos, quando foi extinto, talvez, por uma erupção vulcânica.

A descoberta do Hominíneo das Flores (não é “Homem” das Flores visto que a anatomia da pélvis sugere que o indivíduo era do sexo feminino), constitui um enorme desafio para a comunidade paleoantropológica. Mesmo sabendo que a Paleoantropologia é uma ciência sujeita a um incessante ritmo de mudança e que, como dizia Stephen Jay Gould (Gould, 1988), os apontamentos das aulas de um curso de evolução humana deveriam ser jogados no lixo no final de cada ano e reescritos no ano seguinte, o esqueleto LB1 é um verdadeiro “estranho” na árvore evolutiva humana. Onde colocar na genealogia da nossa espécie um hominíneo com características totalmente bípedes, com pouco mais de 1 metro de altura, com apenas 380 cm3 de capacidade craniana (menor que a de um chimpanzé adulto), que, possivelmente, fabricava instrumentos de pedra, e que viveu até há cerca de 18 mil anos, quando todos os outros humanos do planeta já eram Homo sapiens sapiens?

Antes de abordar esta questão, parece-nos importante esclarecer que com os dados apresentados pelos autores da descoberta, a comunidade científica não possui todas as informações necessárias para formular, ainda, um parecer final sobre este achado. Sabemos que foram descobertos entre três e oito indivíduos no sítio em Flores (Brown et al., 2004, Dalton, 2005), no entanto, apenas um é descrito por completo (Brown et al., 2004). Logo, apenas com a publicação dos dados dos outros indivíduos será possível dizer com maior certeza que se trata de um grupo de criaturas com características semelhantes, e não de um indivíduo aberrante ou de alguns representantes com alterações genéticas de uma população maior e normal. Mesmo para o LB1, há dados que ainda consideramos inconclusivos, como por exemplo a estimativa da idade à morte, talvez de uma outra espécie se considerarmos a denominação actual, baseada em dados de humanos modernos, e o intrigante comprimento dos membros superiores, que são tidos como particularmente longos a ponto de o achado ser apelidado de “Rei dos Braquiadores”( BBC News, 2004), quando os membros dos Homo erectus tinham proporções já muito próximas dos encontrados no Homo sapiens sapiens. Para além disso, segundo a descrição do esqueleto no artigo original (Brown et al., 2004), os ossos dos braços ainda estarão sob as paredes da escavação.

O problema das datações é também outra questão importante. Há quanto tempo havia este hominíneo chegado à Ilha antes de sua extinção? Será que houve mesmo tempo para um processo de especialização tão radical como o indicado pelo tamanho do esqueleto e a forma do crânio? De referir que mesmo relativamente à sua extinção, não é absolutamente claro se esta ocorreu há 18 mil ou há 13 mil anos (Wong, 2005).

Outra questão polémica é saber quais as implicações desta descoberta para o conhecimento da autoria dos controversos instrumentos de pedra da ilha das Flores datados de cerca de 900 mil anos (Daniels, 2005)? Talvez novas datações dos restantes indivíduos possam vir a clarificar melhor a cronologia destes hominíneos. Para o tamanho diminuto e as características morfológicas peculiares dos espécimes, e a sua sobrevivência até tempos recentes, os autores apresentam como hipótese o nanismo insular. Apesar desta ser uma hipótese plausível, uma vez que há vários exemplos conhecidos na literatura biológica ( Wong, 2005, Lahr e Foley, 2004), é surpreendente a pronta aceitação dada a estes achados e a tais explicações pela comunidade científica internacional, que até agora tem sido pouco crítica sobre a descoberta. Dado o intenso debate existente sobre as origens dos humanos nos círculos científicos, este é um facto pouco usual.

Um outro aspecto importante é discutir como seriam as capacidades cognitivas do espécime descrito. Os instrumentos de pedra encontrados na caverna parecem indicar que eles teriam habilidades que outros hominíneos com uma maior capacidade craniana, como os do género Australopithecus não teriam, inclusive a caça especializada de bebés Stegodon (um tipo de elefante anão) (Morwood et al., 2004). Como outras pesquisas já demonstraram a presença de Homo erectus e Homo sapiens sapiens na região, será que o LB1 seria mesmo o autor desses instrumentos? Ou seria este indivíduo (ou família) portador de uma alteração genética e grave atraso mental, e que só sobreviveu porque teve o apoio dos indivíduos sadios do seu grupo?

Os casos extremos de microcefalia (cérebro muito menor que a média de 1350 cm3) e de nanismo em seres humanos modernos são extraordinariamente raros, sendo que a maioria dos indivíduos portadores dessas alterações morre antes de chegar à idade adulta (Diamond, 2004). Dokladal e Horackova (1994) discutem dois casos de indivíduos com cérebros de cerca de 350 cm3 que sobreviveram até aos 30 anos, a idade à morte especulada para o LB1. Mas esses casos são a excepção absoluta na nossa espécie, verdadeiras raridades. Por exemplo, considerando que o Homo erectus tinha um volume craniano de 800-1100 cm3, o cérebro deste seu eventual descendente das Flores era, pelo menos, 210,5% menor. Por outro lado o corpo dos habitantes das Flores teria encolhido apenas 58,8%. O conhecimento dos tamanhos e dos volumes encefálicos dos restantes indivíduos, será certamente um dado importante para se entender que forças evolutivas poderiam originar esta grande distorção entre o tamanho do corpo e o tamanho do cérebro deste hominíneo, uma vez que, desde os Australopithecus, a tendência do grupo tem sido o aumento do volume craniano proporcionalmente maior que o do corpo (Wolpoff, 1999). O tamanho cerebral tem sido sempre um dado chave para a compreensão da evolução humana. Mesmo que fósseis possivelmente de ancestrais humanos com crânio pequenos tenham sido encontrados em África (Potts et al., 2004) e que os fósseis de Dmanisi, na Geórgia, com 1.8 milhões de anos, tenham provado que cérebros pequenos já eram cérebros suficientemente eficientes (Vekua et al., 2002), há uma diferença substancial entre LB1 e Dmanisi, já que estes últimos têm o dobro da capacidade craniana do Homem das Flores. Será que, com tudo o que sabemos sobre biologia do esqueleto e anatomia e fisiologia do cérebro, um só achado pode pôr em causa toda a importância do tamanho cerebral como critério chave da evolução humana? Nesta perspectiva, a revelação feita pela equipa de Dean Falk (Falk et al., 2005), após análise do interior do crânio de LB1 por tomografia computorizada, de que o tamanho comparativo do cérebro relativamente ao tamanho corporal difere do dos pigmeus e que a forma do cérebro nada tem a ver com a de um microcéfalo, é surpreendente. Apesar deste estudo ter despistado patologias, a manutenção da posição por parte de Alan Thorne, da Austrália, que reafirma que “Hobbit”, ao invés de uma nova espécie, seria um portador de uma desordem congénita de microcefalia, não é menos intrigante (Dalton, 2005).

Mas logo após estes dados de Falk se terem tornado públicos, foi também dado a conhecer que haveriam deformações cranianas nunca descritas (Henneberg, 2005) e a “história” de que os originais dos fósseis terão sido seriamente danificados, veio retirar credibilidade a toda esta odisseia. Estes alegados danos foram equiparados a uma facada na Mona Lisa. Se de facto for o caso, então nunca se poderá saber toda a verdade.

A mesma equipa que “desenterrou” este inesperado achado está agora empenhada na descoberta do seu ancestral na ilha de Java. Se a Gruta de Song Gupuh (Dalton, 2005) situada no lado oposto da linha de Wallace relativamente às Flores, fornecer, como é expectante, fósseis, não só se poderá fazer um pouco mais de luz sobre este mistério como também contribuir para o conhecimento de quando e como se atravessou essa linha imaginária mas pertinente.

Há ainda outras dúvidas: alegadamente os floresiensis viveram numa pequena ilha, talvez com os Homo erectus ou mesmo com os homens modernos, que se sabe habitarem nessa altura o Bornéu, por centenas (talvez milhares?) de anos, onde só havia uma espécie principal para consumo (Stegodon). Será que estas espécies não competiam nem interagiam entre si? Terá havido fluxo génico entre eles? Como ocorreu a sua extinção? Quanto tempo viveu este grupo entre sua origem e sua extinção? A verificarem-se os danos severos dos fósseis originais, será ainda mais difícil a análise do material. Estes alegados danos poderão mesmo impedir que muitas respostas sobre esses achados sejam algum dia encontradas. Entretanto, a concretização da sequenciação do ADN retirado de um fragmento de costela do Hobbit, poderá trazer alguns dados sobre a sua identidade (Dalton, 2005).

Todas estas questões têm colocado em cheque as descobertas da Ilha de Flores. Porém, não é a primeira vez que isso ocorre pois as ilhas da Indonésia já ofereceram à ciência achados fenomenais como o Homo erectus, descoberto por Eugene Dubois em 1891, que também causou grande comoção à época de sua divulgação. Este arquipélago é, sem dúvida, em virtude do seu isolamento, um caso muito particular em termos de evolução animal. No entanto, assim como a antropologia deve estar sempre aberta a novas reconfigurações no “arbusto” evolutivo humano, é importante que também mantenhamos a serenidade analítica necessária, para não tirar conclusões apressadas sobre achados que ainda não foram totalmente apresentados à comunidade científica internacional.

 

Referências

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Diamond, J. 2004. The astonishing micropygmies. Science., 306(5704):2047-

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Falk, D., Hildbolt, C., Smith, K., Morwood, M.J., Sutikna, T., Brown, P., Jatmiko, Saptomo, E.W.; Brunssen, E.W. & Prior, F. 2005. The Brain of LB1 Homo floresiensis. Science, 308(5719): 242-245.

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Henneberg, M.J. 2005. www.adelaide.edu.au/health/anat/staff/maciej.html

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Morwood, M.J., Soejono, R.P., Roberts, R.G., Sutikna, T., Turney, C.S.M., Westaway, K.E., Rink, W.J., Zhao, X., Van den Bergh, G.D., Awe Due, R., Hobbs, D.R., Moore, M.W., Bird, M.I., & Fifield, L.K. 2004. Archaeology and age of a new hominin from Flores in eastern Indonesia. Nature, 431:1087-1091

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Wolpoff, M.H. 1999. Paleoanthropology. 2nd. Edition. McGraw-Hill, Boston.

Wong, K. 2005. The littlest human. Scientific American, 292(2):55-65.